Parecer

PARECER DA SOCIEDADE DE TERAPIA INTENSIVA DO RIO GRANDE DO SUL COM RELAÇÃO A CONSULTA PÚBLICA 753/2019

A complexidade dos cuidados atuais de saúde, resultante dos avanços científicos/tecnológicos e incentivos financeiros, levaram a mudanças sistemáticas na prática dos profissionais de saúde. Há um arrazoado teórico bastante fundamentado sugerindo que uma relação elevada de pacientes por profissional de saúde da equipe multidisciplinar pode impactar nos desfechos dos pacientes internados em Unidade de Terapia Intensiva.

A Sociedade Européia de Terapia Intensiva, dentro das suas recomendações quanto a organização e o staff das UTIs, sugere que esta relação não seja maior que 8 pacientes. Relações mais elevadas estão sabidamente associadas a pior prognóstico em pacientes criticamente enfermos, incluindo desfechos sinalizadores de uma piora do processo de cuidados de saúde, como o aumento na incidência de infecções nosocomiais. Outras variáveis também devem ser contempladas ao se estimar a relação ideal de leitos por intensivista, tais como a severidade e as comorbidades dos doentes, a heterogeneidade dos casos, a presença de outros profissionais de suporte e o aparato tecnológico associado.

Profissionais de saúde sobrecarregados podem afetar negativamente a segurança do paciente, inclusive numa situação de risco maior para o surgimento de burnout, uma síndrome que envolve exaustão emocional, despersonalização e uma sensação diminuída de realização profissional. Outras consequências graves do burnout são uma menor performance profissional, um menor engajamento nos processos de trabalho e um aumento na incidência de absenteísmo e de trocas no staff da unidade. Levando-se em conta estas variáveis, na terapia intensiva a identificação da estrutura ideal de staff tem sido um foco de intenso debate, em virtude da complexa tomada de decisões no âmbito da prática médica diária. Em 2012 Ward e colegas identificaram que, subjetivamente, um número superior a 14 pacientes por médico impacta negativamente na educação, no bem-estar profissional e nos cuidados do paciente, potencialmente impactando na incidência de Burnout entre os profissionais, notando-se também um menor alinhamento com protocolos e com processos de trabalho, quando comparados com intensivistas com uma carga menor ou igual a 8 pacientes durante a jornada de trabalho. Em 2015, Neuraz publicou estudo associando número de leitos por profissional com desfechos dos pacientes, apontando uma razão de risco para mortalidade de 2,0 quando o intensivista era responsável por 14 ou mais leitos, quando comparado àqueles responsáveis por 8 ou menos leitos. Em 2017, Gershengorn encontrou uma associação entre maior mortalidade em UTIs no Reino Unido com um volume de pacientes maior que 7,5 pacientes por intensivista, em estudo observacional multicêntrico. Consideramos que a RDC deve especificar o dimensionamento mínimo. A legislação vigente compreende portarias como a 895/17, que determina a existência, em UTI de nível III, de um plantonista e de um enfermeiro para 5 leitos ou fração, com 50% dos quais com título em terapia intensiva. Elas terão preponderância sobre a RDC? Esta é uma posição juridicamente possível ou a inexistência de uma descrição mais precisa do dimensionamento pode gerar dubiedade de interpretações e insegurança jurídica? A exclusão das designações de rotineiro e de plantonista do artigo quarto ferem as disposições do órgão de classe – AMIB – que defende e orienta a respeito desta distinção com interesse em qualificar a prática. O cuidado fragmentado, quando da inexistência do rotineiro – aumenta o tempo de internação e a efetivação dos planos de cuidado do doente.

Perante o exposto consideramos que mudanças nas normativas vigentes caracterizam-se num considerável retrocesso, também por não contemplar uma adequada mensuração da intensidade de outras atividades que impactam significativamente na prática clínica diária no contexto da terapia intensiva: turnover de pacientes (altas e admissões), dias de alto volume de trabalho (por conta das intercorrências apresentadas pelos pacientes), atividades fora do ambiente de UTI (triagem de leitos, atividades administrativas, consultoria de outros serviços), procedimentos, revisão de dados clínicos dos pacientes, interconsultas com outros profissionais ou especialistas, procedimentos a beira do leito, transporte intra-hospitalar, encontros com familiares nos horários de visita, discussões com os mesmos sobre cuidados de final de vida, atividades de ensino e administrativas inerentes ao processo de trabalho na unidade. Diretrizes espanholas demonstram, detalhadamente, a carga de trabalho a qual o médico intensivista está sujeito, com atividades assistenciais das mais diversas naturezas, como também de ensino, pesquisa e gestão, sugerindo-se um número ideal de pacientes por profissional que vai ao encontro das normativas vigentes. Consideramos, portanto, um grave retrocesso a possibilidade de modificação da Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) 7/2010 no que se refere ao Artigo 14; uma vez que a ausência de regulamentação nas demandas de profissionais de saúde para cada unidade, em geral, e de médicos, em particular, pode acarretar em uma evidente piora dos cuidados dos pacientes criticamente enfermos.

Também nos causa consternação a sugestão de modificações no Artigo 13, que versa sobre a Responsabilidade Técnica (RT) de uma UTI. Conforme a RDC 7/2010, está habilitado para a RT um profissional titulado em Medicina Intensiva. Revogar este item vai de encontro aos contínuos esforços de capacitação e de melhora da formação do médico intensivista. O profissional adequadamente treinado para as diversas particularidades dos cuidados do paciente criticamente enfermo é o intensivista, titulado através de um Centro Formador vinculado a Associação de Medicina Intensiva Brasileira, a qual implementa diretrizes bastante robustas quanto as necessidades mínimas de formação deste profissional, em consonância com diretrizes internacionais da área. A Unidade de Terapia Intensiva é o local de atuação do intensivista por excelência, especialidade afim e construída no ambiente de cuidado ao paciente crítico. Desta forma, o profissional médico habilitado em Medicina Intensiva constitui-se no indivíduo naturalmente designado para o cargo, possuindo conhecimento e aptidão técnica para avaliar a alocação de recursos, adequação de estrutura e capacitação da unidade ao bom desenvolvimento do cuidado, conhecendo a dinâmica das unidades. Portanto, consideramos o ato de liberar a possibilidade de RT de uma UTI a qualquer outro profissional que não tenha sido submetido ao mesmo grau de treinamento no manejo e nos cuidados de uma unidade de pacientes criticamente enfermos como uma ação de grande risco e de retrocesso aos contínuos avanços que a terapia intensiva tem conseguido ao longo dos anos no nosso país.

 

Porto Alegre, 29 de janeiro de 2020.

Bibliografia: 

  1. Ward NS. Curr Opin Anesthesiol 2015;28:172-179.
  2. Vigilanti EM. JAMA Intern Med 2017;177:396-398.
  3. Gershengorn HB. JAMA Intern Med 2017;177:388-396.
  4. Gershengorn HB. Ann Am Thorac Soc 2016;13:598-599.
  5. Ward NS. Crit Care Med 2013;41:638-645.
  6. Associação de Medicina Intensiva Brasileira. Manual do Centro Formador Adulto, Versão 2019-2020.
  7. The CoBaTrICE Collaboration. Intensive Care Med 2006; doi: 10.1007/s00134-006-0215-5.
  8. Tello VG. Med Intensiva 2018;42:37-46.